Ruínas da antiga fábrica de cimento Portland estão na Ilha Tiriri, em Santa Rita. Tese de doutorado também rendeu um folheto de cordel feito pelo pesquisador
Um pesquisador paraibano descobriu evidências de que uma fábrica de cimento do tipo Portland, que funcionou na cidade de Santa Rita, Região Metropolitana de João Pessoa, foi a primeira fábrica do tipo na América Latina. A fábrica funcionou por poucos meses, no final do século XIX, e hoje está em ruínas.
A pesquisa, tese de doutorado do perito criminal federal Alysson Medeiros, está disponível no repositório institucional da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Todo o trabalho durou cerca de quatro anos e além da descoberta, também rendeu um livreto de cordel escrito pelo pesquisador.
O local onde se encontram as ruínas da antiga fábrica de cimento Portland tem cerca de 9 mil metros quadrados em uma porção de terreno na Ilha Tiriri. Em 1892, entretanto, o local abrigava não só a fábrica como também um pequeno porto, construído para o escoamento do produto no estuário do Rio Paraíba.
A indústria foi explorada por um grupo nacional, cujo diretor executivo era um engenheiro gaúcho formado na França. A fábrica foi inicialmente construída por um engenheiro carioca que estudou nos Estados Unidos e teve o projeto assinado por um renomado engenheiro inglês.
O empreendimento funcionou por pouco tempo e teria fracassado não por causa da qualidade do cimento nem pela mudança do processo produtivo para fornos rotativos, usados até hoje na fabricação do cimento Portland. Segundo o pesquisador, a fábrica teria fechado por um conjunto de causas envolvendo desde problemas de eficiência relacionados a um dos equipamentos a até mesmo problemas de ordem econômica.
Apesar disso, o cimento lá fabricado foi utilizado em construções como a antiga Cadeia Pública de João Pessoa, o revestimento dos antigos reservatórios de água que existiam na Praça João Pessoa e também em obras complementares do Theatro Santa Roza, que já havia sido inaugurado quando da construção da indústria.
Alysson conta que soube da antiga história da fábrica enquanto estudava no programa de doutorado em ciência e engenharia de materiais. O orientador dele, Sandro Marden Torres, fez parte de um grupo de pesquisadores da UFPB, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB), que em 2014 apresentaram um banner sobre a fábrica visando estimular pesquisas sobre o local.
“Eu trabalho na área de engenharia forense e pelo meu perfil de perito, acabei ‘engolindo a isca’ que jogaram e encarei o desafio da pesquisa. O fato de ter experiência na perícia forense possibilitou desvendar o mistério da história desta fábrica”, conta o pesquisador.
Segundo Alysson, todas as pesquisas anteriores sobre a história do lugar a colocavam como sendo a primeira fábrica de cimento do Brasil ou no máximo da América do Sul, porém a pesquisa feita por ele encontrou materiais e registros que a reposicionou na linha do tempo, sendo a primeira da América Latina.
“Descobri evidências que comprovaram a sua atividade, que era objeto de discussão e dúvida até então. Ainda restavam dúvidas de que ela fosse a primeira fábrica latino americana e até mesmo de que ela havia produzido cimento”, diz.
A pesquisa começou com um estudo bibliográfico sobre o setor de cimento Portland no século XIX em todo o mundo. Segundo Alysson, o Reino Unido era a referência da época, além da França e da Alemanha. Estes países foram pioneiros na fabricação deste tipo de cimento, que só depois começou a ser feito nos Estados Unidos.
“Antes de saber se a fábrica era a primeira do Brasil, precisei identificar se ela, de fato, era uma fábrica de cimento Portland. Estudando o processo produtivo das fábricas europeias e americanas e comparando com as instalações e equipamentos que haviam na fábrica daqui, de fato a fábrica de Tiriri era totalmente compatível e apta a fabricá-lo”, diz.
Após esta comprovação, o pesquisador passou para a fase de perícia, investigando no local os vestígios da atividade industrial, para saber se o cimento produzido era consistente com o que aparecia nos registros documentais. “Nas estruturas remanescentes da fábrica restaram os fornos de tecnologia alemã. Eu estudei o processo de fabricação do cimento daquela época e em um dos quatro fornos das ruínas, encontrei material suficiente que tornou possível a pesquisa em laboratório”, comenta Alysson.
A pesquisa teve a fase de campo e depois a de laboratório, com uso de tecnologia de ponta da UFPB. Além dos resíduos no forno, o pesquisador coletou amostras das jazidas de calcário da ilha e também do cimento produzido na época, que estava armazenado em um barril de madeira e que acabou se solidificando com o passar dos anos. Alysson considera a peça um dos mais importantes achados da pesquisa.
“Fiz os ensaios para caracterizar os materiais com várias técnicas a fim de saber se ele era mesmo compatível com o cimento esperado da época. Fiz o comparativo e na verdade identifiquei que ele se alinhava com o Mesoportland, um cimento Portland produzido com o tipo de forno que havia no local”, explica o pesquisador.
O orientador de Alysson disse que o estudo revela o pioneirismo da América Latina na produção de cimento Portland, mesmo a fábrica tendo funcionado por apenas seis meses.
“Nossas constatações mostram que eles tinham um cimento Portland de qualidade, que poderia ser usado na construção civil. Essa fábrica do século XIX é um marco do pioneirismo tecnológico do nosso estado. Sem essa fábrica, o polo cimenteiro paraibano poderia não ter acontecido ou, pelo menos, ter seu início retardado em décadas”, diz Sandro Marden, que é professor titular do departamento de engenharia mecânica da UFPB.
Darlene Araújo, doutora em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), diz que os resultados da pesquisa podem render dividendos importantes e que investir na preservação do patrimônio histórico pode estimular o turismo e a economia na região.
“Eu vejo ela (a fábrica) como extremamente emblemática, pelo fato de ter sido pioneira. A gente tem naquele local o registro do início da fabricação do cimento não só na Paraíba nem no Brasil, mas na América Latina. Nós temos os vestígios dessa cultura industrial que aconteceu ali e se mantém naquela ilha”, completa.
Para Alysson, a descoberta é o resultado de um imenso trabalho de equipe, que envolve não só professores e colegas do programa de doutorado, como também colegas de trabalho na Polícia Federal, moradores do distrito de Livramento, em Santa Rita, e também funcionários da empresa que atualmente ocupa a ilha onde encontram-se as ruínas. “Sem eles, teria sido difícil ter esse êxito em tão pouco tempo de pesquisa”, completa.
Confira o Vídeo da reportagem: https://glo.bo/2UKr7T0