Médicos sanitaristas dizem que é fundamental avançar com vacinação nos outros municípios do estado e exigir garantia de imunização de turistas a partir do réveillon: ‘Rio não é uma ilha’
RIO – A alta taxa de vacinação e os índices baixos de contágio e hospitalização por Covid-19 no Rio dão otimismo aos adeptos da maior festa da cultura brasileira. Além de promover um ambiente de celebração da vida, o que seria bem-vindo depois de dois anos de pandemia, o carnaval é um motor da economia local, fonte de renda essencial para milhares de pessoas. Porém, a provável circulação de turistas brasileiros e estrangeiros não vacinados gera preocupação. Não faz sentido celebrar a vida se a festa gerar uma onda de mortes. Então, o que é preciso?
O médico Roberto Medronho, professor titular de Epidemiologia da UFRJ, diz que, hoje, os indicadores na capital fluminense inspiram segurança. Não há filas para internação, e a média móvel de óbitos causados pela doença está zerada. A taxa de contágio está em 0,76 (abaixo de 1, mas o ideal é 0,5) e a parcela da população acima de 12 anos com esquema vacinal completo chega a 90%. Porém, neste assunto reside uma questão primordial:
– O Rio não é uma ilha. A campanha de imunização na cidade atingiu níveis elevados, mas o carnaval atrai pessoas do mundo inteiro. Então, precisamos saber se esses turistas estão vacinados. Se houver carnaval, as autoridades devem trabalhar para que restaurantes, hotéis, aeroportos e rodoviárias exijam um certificado de imunização completa – afirma Medronho. – O governo federal é contra cobrar o passaporte vacinal dos passageiros nos aeroportos, mas isso é algo que diversos países fazem justamente porque é fundamental para a redução de riscos.

Para o sanitarista Hermano Castro, pneumologista e pesquisador da Fiocruz, ex-diretor da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp), é urgente avançar na vacinação de outros municípios do próprio Estado do Rio.
– As taxas de vacinação no Estado do Rio são muito heterogêneas. Enquanto a capital já atingiu 90%, há cidades com índices ainda baixos, o que se torna mais preocupante no carnaval, por causa da circulação e das aglomerações de pessoas sem uso de máscara – afirma Castro. – Para se ter segurança, precisamos de 80% da população de todo o estado vacinada de forma homogênea. Também é importante começar logo a imunização de crianças, para afastar qualquer risco. São realidades possíveis de alcançar até fevereiro, mas é preciso acelerar.
Segundo um boletim divulgado no último dia 20 de novembro pela Secretaria Estadual de Saúde, 40% dos municípios do Estado do Rio ainda não imunizaram completamente nem metade de suas populações. Em Paraty e São Fidelis, por exemplo, apenas 20% dos moradores tomaram as duas doses ou a dose única da vacina. Além disso, cidades da Região Metropolitana, como Duque de Caxias (45,4%) e Itaboraí (41,4%) ainda têm muito trabalho a fazer para proteger seus moradores e impedir que eles levem o vírus para outros municípios caso decidam viajar entre o fim do ano e o carnaval.
O réveillon, aliás, deve ser fonte de preocupação. A festa da virada, que pode levar mais de um milhão de pessoas à Praia de Copacabana, vai ser um teste para o carnaval. Ambos os eventos atraem gente de países onde o número de casos de Covid-19 está subindo, em grande parte, por causa do negacionismo antivacina. A Europa já lida com uma quarta onda da doença, e mesmo países com altas taxas de imunização, como Portugal, voltaram a adotar medidas restritivas. De acordo com o pneumologista da Fiocruz, será necessário acompanhar o impacto das festas de fim de ano.
– Correto seria se aeroportos, hotéis e o Airbnb cobrassem certificados de vacinação dos turistas, tanto os domésticos quanto os internacionais, já no réveillon. A grande maioria das hospitalizações e mortes acontecem entre pessoas que não estão vacinadas. Então, existe um risco de a festa da virada causar um aumento no número de internações em meados de janeiro. Este eventual acréscimo pode ser passageiro, uma vez que ficaria restrito aos não-vacinados. Mas será preciso monitorar essa evolução para determinar os riscos em fevereiro – diz Hermano Castro.
A pedido da Comissão Especial de Carnaval da Câmara de Vereadores do Rio, a Fiocruz e a UFRJ divulgaram, em outubro, uma nota técnica que lista cinco indicadores para a realização de um carnaval seguro. Entre eles, estão a necessidade de uma média móvel semanal menor que 110 casos de síndrome respiratória aguda grave (SRAG), fila de espera para internação de três pessoas ou menos por dia; taxa de positividade de testes diagnósticos menor que 5%, índice de contágio menor que 1 (0,5 seria o ideal) e nível de imunização de ao menos 80% da população no Estado do Rio e no Brasil.

– Hoje, os índices na cidade do Rio estão sob controle, mas não sabemos o que vai acontecer até fevereiro. O carnaval é um momento mágico que todos queremos. Os níveis de ansiedade e depressão estão altíssimos, as pessoas querem e precisam celebrar. Mas, antes de ser a favor do carnaval, eu sou a favor da vida e da ciência. Portanto, se a pandemia recrudescer, sem chances – diz Medronho. – E, mesmo com todas as precauções, não vamos chegar a risco zero. Portanto, se houver carnaval, é provável que observemos algum aumento no número de casos depois. É um debate ético que a sociedade precisa travar.
O maestro Kiko Horta, um dos responsáveis pelo tradicional Cordão do Boitatá, explica que os organizadores do bloco já planejam o carnaval do ano que vem, mas “com um olho no padre e outro na missa”. Ele nem cogitou ir para a rua em fevereiro deste ano e criticou as pessoas que lotaram os espaços públicos para festejar num momento crítico da pandemia, com pouca gente imunizada e altos índices de contágio. Agora, o cenário é outro, mas Horta não descarta cancelar tudo, caso, lá na frente, os especialistas em saúde pública digam que não existem condições seguras para se fazer o carnaval.
– Estamos com a Fiocruz. O nosso carnaval está em pauta, queremos muito encontrar as pessoas, promover esse momento de alegria e de celebração da vida depois de tanto sofrimento. Mas não vamos fazer nada contra a ciência – pondera o músico, que esteve na última reunião da Comissão de Carnaval da Câmara, presidida pelo vereador Tarcísio Motta (PSOL). – Estamos otimistas por causa da situação atual no Rio, mas não podemos cair no negacionismo lá na frente.

O GLOBO