Município histórico celebra 20 anos do título
“Goiás, minha cidade…
Eu sou aquela amorosa
de tuas ruas estreitas,
curtas,
indecisas,
entrando,
saindo
uma das outras”.
Os versos da poesia Minha Cidade, da escritora Cora Coralina (1889 -1985), abriram, há 20 anos, o dossiê de candidatura do município histórico ao título de Patrimônio Cultural Mundial da Humanidade, por parte da Unesco, em Helsinque (Finlândia). A evocação da vida e obra da filha mais famosa da cidade foi estratégia no documento, mas a população local sabe bem que o legado dela não ficou apenas no passado.. É prática real no presente. Duas décadas depois, a casa dela, que se transformou em museu, é o lugar mais visitado da cidade. Versos dela e de outros escritores iluminam toda a Rua Dom Cândido, onde resolveu viver, vender doces e entregar poesias a quem passava.
“Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces.
Recomeça” (do livro Vintém de Cobre)
“Desde 1956, com ela viva, a casa era aberta para receber as pessoas. Eu considero que ela foi a precursora do turismo no local”, explica a professora Marlene Velasco, diretora do museu Cora Coralina, que funciona na casa em que a escritora morava. Aliás, tudo ficou no lugar original. A cama, as roupas no cabide, a máquina de costura, os cadernos e escritos, e a máquina de escrever. Quem datilografava as poesias era Marlene, que se aproximou da escritora aos sete anos de idade, encantada pelos doces e versos fabricados ali. Marlene Velasco explica que Cora Coralina vendia doces para sobreviver, e escrevia por amor. “As pessoas vinham comprar os doces e ela oferecia os livros”.
“Eu sou estas casas
encostadas
cochichando umas com as outras”.
(da poesia Minha Cidade)
“Eu frequento essa casa desde a minha infância. Eu vinha pra cá e brincava no quintal e ganhava docinho. Ela sempre deu muita atenção às crianças e aos jovens. Ela dizia que o jovem passava energia positiva para ela. Depois, entre 1979 e 1980, eu passei a datilografar os originais”, lembra a diretora. Marlene Velasco tornou-se pesquisadora privilegiada da obra da escritora, marcada por tratar dos mais pobres e explorados. Entre os trabalhos em que ela participou, estão Meu livro de cordel, Estórias da Casa Velha da Ponte e Vintém de Cobre. Cora ficava ao lado da jovem para decifrar as letras difíceis traçadas com a ligeireza do pensamento.
A escritora, aliás, tinha carinho especial pelos moradores próximos: tanto que criou o Dia do Vizinho, confraternização que ocorre no sítio histórico desde 1980. “Cora não precisava, mas resolveu voltar para as raízes dela aqui na cidade em 1956. Havia saído em 1911. Deixou filhos e netos e voltou sozinha para a cidade dela. Foi um retorno triunfal. Se nós não tivéssemos Cora Coralina, hoje a cidade não teria o público, o turismo e o reconhecimento internacional”, afirma.
Porto seguro
A casa é considerada o porto seguro da cidade, além de preservar e divulgar a obra e a memória da poetisa, desde 1989. O local abriga todo o acervo documental e da produção literária dela. “Sou voluntária da casa. É um museu que sobrevive apenas dos ingressos (R$ 10)”. Antes da pandemia, o museu recebia uma média de 1,5 mil pessoas por mês e passou seis meses fechado por causa das medidas de restrição de circulação de pessoas. Outro baque aconteceu há quase 20 anos: “No dia 31 de dezembro de 2001, nós tivemos a grande enchente. Estávamos em comemoração ainda do título. Entrou água com mais de um metro, mas nada se perdeu dentro dessa casa. A casa de Cora Coralina foi o lugar que recebeu recursos para distribuir para reconstrução de toda a cidade”.
Cora Coralina passou a ser conhecida para o Brasil e para o mundo só aos 90 anos de idade, graças a um texto publicado no Jornal do Brasil pelo consagrado escritor Carlos Drummond de Andrade. O poeta defendia que o livro de Cora, Vintém de cobre, era, na verdade, “moeda de ouro”. Cora havia publicado o primeiro livro, Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, 15 anos antes. “Todo mundo queria saber quem era aquela Cora Coralina que Drummond falava tão bem”, conta Marlene Velasco.
Uma rua em versos
Cora morreu cinco anos depois de ficar famosa. Mas a cidade ainda respira seus versos. Neste ano, por exemplo, todas as casas na rua da escritora tem trechos de poesia nas fachadas das casas. “A iniciativa foi batizada de Passo Poético. É uma forma de homenagear Cora, outros escritores da cidade e influenciar para as letras”, diz o coordenador do Instituto Biapó, o produtor cultural PX Silveira. Ao todo, são 16 excertos de obras literárias.
A artesã Elza de Paula, de 64 anos, sorri ao declamar os versos que estão em sua parede. “Pode viver satisfeito um coração sem amor?”, de Tereza Godoy (1875-1958). “Claro que não. Acho lindo isso. Tenho certeza de que não é possível. Na minha casa e na cidade inteira”. A comerciante Joana Lago, do outro lado da rua, testemunha que a maior parte das pessoas que ela conhece na cidade gosta de poesia. “Eu conheci a Cora viva. Ela era uma aula para todas nós. Sempre leio o que está escrito e penso em saudades. Na parede dela, os versos “quando o pau d´arco floresce, fazendo sombra no chão, meu coração entristece. Saudades lá do sertão” (da Canção do Araguaia, de Francisca Mascarenhas e Joaquim Camargo).
Outra vizinha, a professora aposentada e cozinheira Madalena Brito, de 58 anos, aprecia fazer o famoso empadão goiano – mas o que ela gosta mesmo é de preparar poesias e contos. Os versos e prosas têm inspiração na vizinha famosa. “Eu conheci a Cora Coralina quando eu era criança e ela já idosa. Tenho um poema chamado Carta à Cora Coralina. Antes, eu não sabia que ela era escritora. Eu a conhecia como Cora, a doceira. Ela tem uma influência muito grande na minha vida”. Madalena não conseguiu imprimir, mas já escreveu dois livros e há uma série de textos soltos prontos para sair das gavetas.
A influência da rua impacta quem mora na cidade, mas também quem vem de fora. Nesta semana, escolas de cidades goianas aproveitaram as festas que ocorrem no município histórico para visitar a cidade em versos. A professora Sandra Batista, de 48 anos, de um colégio de Aparecida de Goiânia, estava orgulhosa da turma, que fazia fila para conhecer quem foi aquela Cora Coralina. “Fazemos roda de leitura e é muito importante conversar, por exemplo, sobre o empoderamento feminino, sobre liberdade, sobre paz e esperança. Cora tem tudo a ver com isso”, entende. Entre as crianças daquela turma, aos 12 anos de idade, meninas e meninos concordam com a cabeça que é preciso conhecer de perto. Sorriem ao olhar para as paredes, para o casario e quando leem as palavras pintadas nos azulejos e, agora, também na memória de quem passa por esse lugar.
Agência Brasil