Por Alessandra Lontra
Existe uma diferença imensa, e quase invisível à primeira vista, entre evoluir a gastronomia e maquiar a cultura até que ela não se reconheça no espelho. Nos últimos anos, vimos pratos nascidos de quintal, de roça, de fogão à lenha e de história sendo servidos em versões tão “modernas” que perderam a voz. A comida que carregava território virou conceito. O sabor que trazia memória virou estética. A refeição que unia pessoas virou performance para ser consumida pelos olhos. E não pela alma.
Não se trata de ser contra inovação. A cozinha é, por natureza, um espaço de criação, troca e reinvenção. O problema começa quando a reinvenção arranca a raiz para plantar artifício. Quando o chef decide que o prato precisa caber em um padrão internacional de apresentação, mesmo que isso custe a autenticidade. Quando a tradição vira adereço, a história vira legenda de cardápio e a essência vira “detalhe dispensável” porque não é instagramável.
A cultura alimentar é um patrimônio vivo. Ela é feita de mãos, de saberes transmitidos, de cheiros que anunciam quem somos. Há um mundo entre “valorizar o local com técnica” e “disfarçar o local para parecer sofisticado”. A primeira atitude honra o território; a segunda o apaga. E é aqui que a gourmetização se torna perigosa: ela cria um produto bonito, mas vazio, e, com o tempo, substitui a verdade pelo espetáculo.
No turismo, esse processo tem sido ainda mais cruel. Há viajantes que chegam a um destino e provam versões “repaginadas” de pratos que, ironicamente, nunca conheceram em sua forma original. Muitos destinos estão exportando “a foto da comida” em vez de exportar a alma do prato. E isso gera um efeito silencioso: o visitante vai embora achando que viveu a cultura local, quando na verdade consumiu uma caricatura dela.
Mas é preciso dizer: não são só chefs e destinos que precisam rever escolhas. O público também. A gourmetização só se sustenta porque existe quem a aplauda, quem prefira a estética à verdade, a exclusividade ao sabor, o status ao sentido. Há consumidores que trocam o prato que abraça pela versão que impressiona. E, quando o paladar é guiado mais pela foto que pela memória, perdemos todos.
A boa notícia é que existe um caminho do meio, e ele é extraordinário. É totalmente possível inovar sem descaracterizar, elevar sem distorcer, surpreender sem trair a essência. A verdadeira criatividade não substitui a cultura: ela expande o que já existe. O chef que conhece o território, honra o ingrediente e respeita a história pode brincar com técnica, formato e apresentação, desde que o primeiro gole seja de pertencimento, e não de vaidade.
Resgatar a comida de verdade não significa voltar ao passado; significa levar o passado conosco enquanto evoluímos. Significa permitir que o prato continue contando a história que o originou, agora com novas páginas, não com capa importada. A cozinha autoral mais potente é aquela que faz o morador sorrir de reconhecimento e o visitante se apaixonar pelo sabor que nunca viveu, mas agora não quer esquecer.
Porque, no final, cultura não precisa de espuma para ser grandiosa. Nem de flor comestível para ser respeitada. Ela precisa ser sentida. E uma gastronomia que precisa se fantasiar para ser valorizada já revela, no fundo, que esqueceu o valor que tinha.
Se queremos preservar a cultura alimentar, precisamos devolver ao prato aquilo que nenhuma tendência substitui: verdade. O resto é só montagem.

*Alessandra Lontra* é jornalista multimídia especializada em Turismo, mercadóloga e turismóloga provisionada pela ABBTUR. Com mais de 40 anos de atuação estratégica, é referência nacional em inovação no setor, com forte atuação em governança, roteirização, comunicação digital e inteligência artificial aplicada ao turismo. Lidera o portal Ale Lontra – Notícias em Movimento para um Turismo Além do Óbvio. www.alelontra.com.br.

